Saturday, January 7, 2012

Jogos que fiz [games i made...]: Emaranhado

Olá pessoal, esse é o primeiro post do que eu espero ser uma série na qual eu falo dos jogos em que tive o prazer de participar, de algum modo, na concepção e execução do mesmo.

O primeiro jogo da série será o Emaranhado. O Emaranhado é um jogo que faz parte da plataforma da Olimpíada de Jogos e Educação (OjE) da Joy Street. A OjE é composta atualmente por uma plataforma, que chamamos de jogo mestre, milhares de questões estilo ENEM, que chamamos de enigmas, e por algumas dezenas de jogos, que chamamos de mini-jogos. No site da Joy tem bastante informação, mas esse vídeo do youtube resume bem tudo: http://www.youtube.com/watch?v=HiChC8RczDk. Se você tem um perfil mais acadêmico e gosta de papers, pode ler um artigo muito legal sobre a OjE aqui.

Atualmente é possível jogar os jogos da OjE no site da Olimpiada do governo de pernambuco nesse link. Basta se cadastrar como visitante, o que é possível apenas respondendo um pequeno questionário, e depois acessar a Arena Master. Na Arena Master você tem acesso a vários jogos da OjE. Cada um com uma lista de desafios fáceis, médios e difíceis. Então, para jogar o Emaranhado (jogo que vamos conversar sobre nesse post) basta ir lá, se cadastrar e acessa-lo pela Arena Master (ele é o primeiro jogo da lista no botão mais a esquerda).

O post é longo, sugiro escutar uma música legal durante a leitura. Que tal um rock recifense: Diablo Motor.





Depois da devida apresentação, vamos ao jogo. Escolhi iniciar com o Emaranhado pois, apesar de ser um jogo simples, é um dos jogos mais fechados que fiz até hoje. Tem um escopo muito bem fechado e foi muito polido fazendo com que a experiência que decidimos passar com ele seja completamente traduzida no jogo.

O Emaranhado, assim como todos os jogos da OjE, baseia-se em uma mecânica clássica de jogo, modificando a temática de maneira a explorar conteúdos educacionais sem comprometer a ludicidade. Ou seja, uma proposta totalmente diferente do que nos acostumamos com os jogos educacionais. No caso do emaranhado a mecânica é "emprestada" do jogo untangle que segue uma das diversas variações de puzzle ("quebra-cabeças") que conhecemos.

untangle é um jogo que traduz fielmente a máxima de game design "fácil de aprender, difícil de dominar" (tradução tosca de easy to learn, hard to master). O objetivo é simples: garantir que nenhuma das linhas, ou retas como quiser, se cruzem (como descrito no site - Its super simple: Make sure the lines does not overlap).

Na esquerda as retas colidem. Na direita um dos pontos foi movido para que isso não acontecesse. Passei de estágio!
Uma coisa interessante do untangle é como o jogo se enquadra na lente número 15 (dos brinquedos - The Lens of the Toys) de Jesse Schell. O livro, A arte do Game Design, é uma das principais fontes se você já faz ou pretende fazer jogos algum dia (como produtor, game designer, programador, artista ou qualquer outra coisa). Essa lente tenta ver o jogo como um brinquedo da seguinte maneira: se meu jogo não tiver nenhum objetivo ainda assim seria divertido? E essa é uma visão muito legal do untangle, e da maioria dos puzzles por assim dizer. Você simplesmente vai desfazendo os cruzamentos entre as linhas sem se preocupar muito com o que isso quer dizer. O jogo é tão adequado a essa lente que não existe tema nem objetivo. Você vai simplesmente jogando...

Trecho do livro com a lente # 15 - The Lens of the Toys

Partindo do untangle inserimos uma temática de experiências em um laboratório de química. Experiência essa na perspectiva de um adolescente brasileiro com seus quinze, dezesseis anos. Já que esse é o principal público da OjE. Para esse pessoal um laboratório de química não é um ambiente de trabalho sério onde se criam substâncias que vão ajudar as pessoas de várias maneiras no seu dia-a-dia. Para esses adolescentes o laboratório é um lugar mágico onde coisas surpreendentes acontecem.


Laboratório na visão de um adolescente.

Dessa maneira, o jogo foca em passar uma experiência divertida (como todo jogo deve se preocupar) incluindo esses elementos de tensão, foco, surpresa e atenção. A ideia é apresentar os conceitos da química orgânica mostrando não só como funcionam mas como o manuseio desses elementos deve ser feito com bastante cuidado de uma maneira que os jogadores não percam o interesse pelo conteúdo sendo passado.

Pensando nisso foi criado o Dr. Alex Tom. Químico respeitado que vive em algum ponto no futuro e está trabalhando em experimentos diversos e precisa de ajuda para organizar os átomos de soluções químicas em tubos be ensaio.
Conceitos do Dr. Alex Tom
A criação de um personagem em jogos como esse é de extrema importância. Para passar a experiência necessário o personagem precisa se mostrar sério, pois seu trabalho não é brincadeira, mas ao mesmo tempo não deve ser visto como "chato" ou entediante para os jogadores. Pois, mesmo com seriedade, deve despertar a curiosidade dos jogadores para a importância do conteúdo, nesse caso a química.

Coincidentemente, ou não, Dr. Alex Tom lembra bastante o Dr. Beakman do programa de TV que, de uma certa forma, tem os mesmos objetivos que nós tínhamos.
Beakman na esquerda, cientista com apelo para adolescente. Na direita, o ator  Paul Zaloom, sem apelo algum.
Personagem definido é necessário inserir os conceitos e objetivos em um jogo, que como já dizemos, funciona sozinho muito bem, sem precisar de nada disso. Então como colocar química orgânica sem destruir as qualidades do mesmo.

Para facilitar a vida, um trecho direto do documento de game design do jogo:
No Emaranhado, o Dr. Alex Tom está pesquisando sobre organização de átomos em um computador criado por ele para manipular os átomos de diversas substâncias.
Um dia enquanto acessava o computador em uma fase final da pesquisa, algo deu errado e as fórmulas começaram a se desorganizar de forma caótica. Vendo que o computador não poderia resolver esse problema sozinho, cabe então ao Dr. Tom reorganizar as fórmulas rapidamente antes que algo de pior aconteça.
Então as fórmulas de desorganizaram, se emaranharam, se enrolaram, they tangled. E agora você, como o Dr. Tom, precisa organiza-las de volta. Dessa maneira trouxemos a temática do laboratório, do dia a dia do químico, sem mexer praticamente nada na mecânica do jogo, nem nos objetivos.

Todo essa temática é apresentada ao jogador de maneira lúdica e imersiva. A primeira cutscene mostra Dr. Tom acessando o computador, no melhor estilo hacker. O computador começa a indicar os problemas e pede a ajuda ao professor.

Apresentação do desafio do jogo, tela final.
A partir daí o jogador ver um compartimento com cinco tubos de ensaio que representam os compostos emaranhados e ao mesmo tempo uma lista de levels a serem concluídos para completar o jogo.
Como os levels são apresentados. Apesar da temática futurista e tecnológica apresenta os conceitos  envolvidos.
Finalmente, pra parte que interessa. O jogo em si. Não sei se é fácil ligar os pontos, com o perdão do trocadilho, mas basicamente o que antes era apenas um emaranhado de pontos e retas passa a ser um composto químico com átomos e ligações químicas (simples, duplas e triplas) entre eles. E como o composto está instável o jogador tem um tempo para estabiliza-lo.

Na química orgânica, a grande maioria dos compostos é representado exclusivamente por carbono, hidrogênio e oxigênio. E esses são os elementos que estão incluídos no jogo. Cada um deles é representado por um ponto colorido no emaranhado. O interessante é que a cor dos elementos é convencionada pela química como descobrimos conversando com um professor. O carbono, por exemplo, deve ser representado na cor verde. Além disso, as ligações são representadas em branco enquanto aquelas que precisam ser ajustadas ficam em vermelho.

Tela de jogo com o carbono em verde, hidrogênio em amarelo e as ligações em branco e vermelho. O tempo para estabilizar é indicado por uma barra horizontal na lateral esquerda inferior e na direita uma barra vertical indica quantos compostos ainda precisam ser estabilizados.

Como todos sabem, a ligação entre os elementos varia de acordo com a quantidade de elétrons livres na última camada. A ligação possui também o atributo força, quanto mais ligações mais forte ela é. Para traduzir isso no jogo de maneira interessante as linhas que ligam os elementos podem ser simples ou duplas. Além disso, existe uma distância máxima que a ligação se mantém, que varia de acordo com a sua força. Então, diferente do untangle que o jogador tem uma liberdade infinita para manipular os pontos, no emaranhado o jogador deve se preocupar em não quebrar as ligações!!!

Esse ponto é muito importante pois traz a experiência do foco, da atenção. Um dos primeiros estudiosos do game design, Malone, coloca a fantasia (o que ele chama de fantasy mas o termo mais moderno para representar o conceito é realmente experiência) como um dos pilares para a diversão. Como você pode passar a imersão de algo desse tipo em um jogo? Como fazer com o jogador sinta que precisa prestar atenção, que foco é vital para o trabalho de um químico? A maneira que encontramos foi exatamente a de que a estabilidade de um composto é extremamente frágil, o que é verdade, e que o manuseio errado pode ter consequências perversas. 

Vários elementos visuais e sonoros são empregados para trazer esse nível de imersão e experiência. Sendo eles:
  1. As ligações não são uma reta realmente e sim uma corda. A corda se movimenta cada vez mais a medida que aumenta a chance de ela quebrar (esticada). Esse efeito, apesar de não intuitivo para uma corda (uma corda fica mais reta quando é esticada), faz sentido no contexto já que traz a ideia de instabilidade que uma reta não traz. Esse efeito foi um dos desafios para os programadores do jogo que se saíram muito bem. Para os programadores fica aí um exercício interessante.
  2. Como o jogador tem a visão pelo computador, como num microscópico, o mesmo emite sinais de problema quando algo está prestes a acontecer. Seja esse algo a proximidade entre dois elementos que não podem se colidir, esticar demais uma corda ou o tempo para estabilizar o composto está se esgotando.
  3. Caso algo errado aconteça, o computador e a visão do jogador sofre avarias. Essas avarias penalizam o jogador que fica com a visão dos compostos comprometida.
  4. Avisos sonoros lembrando contagens regressivas de bombas em desenhos animados são amplamente utilizados para indicar tempo esgotando e proximidade. O som, nesse caso, é um elemento crucial para a imersão do jogo.
Tela indicando problemas. No caso o tempo perto de acabar.

Tela com avarias após o jogador cometer algum erro. Importante notar que um erro não significa o fim do jogo seria uma penalidade muito dura para um jogo casual que em regra deve focar em feedbacks positivos. 
Para uma boa noção de imersão e experiência, o livro de Schell aborda pontos muito interessantes. Logo no segundo capítulo que é inteiramente dedicado a criação da experiência e a primeira lente que é a lente da experiência (Lens #1: The Lens of Essential Experience). Um dos exemplo do livro fala sobre passar a experiência de sensações reais, como o frio, por meio de uma mídia eletrônica em que a interface é bastante limitada (como a nossa onde o jogo é todo jogador por mouse). Acredito que esses feedbacks criam no usuário um nível de imersão suficiente para experimentar um laboratório de química ou, pelo menos, a mensagem que queremos comunicar.

Por exigir uma boa dose de foco e atenção, o jogo produz no jogador um sentimento crescente de  ansiedade. O "acumulo" do desafio gera ansiedade, segundo Sorensen. Ou seja, quanto mais tempo no estado de Flow maior será a ansiedade do jogador. E apesar de atingir o Flow ser uma condição desejável em qualquer jogo, manter-se nele por muito tempo pode gerar níveis muito altos de ansiedade que também quebram a experiência. Dessa maneira, tentamos ao máximo manter os compostos relativamente pequenos e cada estágio ter um tamanho bem razoável (que definimos no final como no máximo um minuto). Seguindo essa definição, o emaranhado possui estágios com vários compostos pequenos ou poucos compostos grandes. Dessa maneira o jogador atinge um estado de satisfação (accomplishment, é o termo mais correto) com uma frequência bem interessante. 

Estágios pequenos oferecem não só uma sensação de sucesso constante como também evitam níveis altos de frustração. Em jogos hardcore frustração faz parte da experiência (apesar de ultimamente ter diminuído bastante com as opções constante de salvar o jogo). Em jogos casuais é uma coisa que queremos ao máximo evitar. Assim, ao falhar em algum momento o jogador sabe que não perdeu muita coisa. É fácil recomeçar e fazer novamente afinal, ele só dedicou alguns segundos aquela atividade.

Visando aumentar o replay value do jogo, cada estágio é gerado dinamicamente baseado em uma série de compostos possível na química orgânica. Assim, cada vez que o jogador joga tem uma experiência diferente. Obviamente isso acarretou alguns desafios para equipe de programação que deveria posicionar automaticamente os compostos de forma a ter um desafio interessante em que um certo número de ligações estivessem emaranhadas.

Apesar de toda explicação sobre os elementos em tutoriais, telas de ajuda e também o esforço para fazer os mesmos autoexplicativos, no final de cada estágio uma tela resume a performance do jogador explicando ainda mais os conceitos de maneira simples.
Tela de fim de level do Emaranhado. Explica a pontuação em detalhes dando mais uma vez foco nos conceitos da química.

Pra finalizar, alguns dados da produção. O Emaranhado foi feito na Manifesto Games, onde trabalho, sob encomenda da Joy Street. O jogo foi desenvolvido durante os primeiros três meses de 2010 com uma equipe composta por um produtor (no caso, eu), um game designer, dois programadores e três artistas (composição bem comum por aí). Foi feito em Flash com Action Script assim como todos os jogos na plataforma da OjE.

Espero que tenham gostado! E, de novo, para entender bem os conceitos e a conversa toda aqui vá lá no site da OjE-PE e dê uma jogada. Se não se empolgou pra jogar, tem um vídeo muito legal aqui, e também abaixo:



4 comments:

  1. Muito bom! Não deu pra ler todas as referências, mas achei bem completo o post...

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  2. Legal o artigo! Só um comentário. Você comentou que o "jogo se enquadra na lente número 15". Se não estou equivocado, tanto o Schell, quanto o Crawford, definem "toy" como algo que, obrigatoriamente não tem objetivo associado.

    Na verdade, a própria classificação de Emaranhado como "Puzzle" e "Toy", é algo estranho, já que são excludentes. Um "Puzzle" tem objetivo, enquanto o "Toy" não pode ter.

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  3. Olá Túlio,

    Parabéns pelo blog!

    Ótimo post, espero ver mais dessa serie. Como aspirante a desenvolvedor de jogos, acho muito legal quando alguém compartilha as suas experiências nessa area.

    Grande abraço

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  4. Bruno,

    acredito que seu jogo pode ter um objetivo e mesmo assim se enquadrar na lente. como tem no texto da lente você se pergunta: "Se" meu jogo não tivesse objetivo ele ainda seria divertido?

    e o untangle é um pouco isso. o objetivo é resolver o puzzle, como você disse, mas você não tem um objetivo como salvar uma princesa, por exemplo.

    pelo meno é assim que interpreto a lente. acredito que sua interpretação seja diferente. algo como se eu tenho que desfazer o que tá lá emaranhado, isso já é um objetivo em si. e aí, nessa perspectiva realmente não se enquadraria na lente. é uma visão interessante e me faz pensar que jogos realmente se enquadrariam na lente dessa maneira.

    eu acredito que a primeiro interpretação seja fiel, pois como tem no livro do Jessel ele fala na lente 15 como dois níveis de diversão. E mexer nas bolinhas e ver as retas se descruzarem por si só é um brinquedo legal. Em cima, disso foi construído o Emaranhado que tem um objetivo mais claro, você faz isso para ajeitar fórmulas químicas.

    valeu comentário, muito bom!

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